TEXTOCONTO "O PATO DE ANO NOVO"
Nunca ninguém notara nela qualquer carência.Na noite em que assassinaram seus sonhos, viu que seria sempre assim. Um não encontrar aflitivo com a gente.
Qualquer coisa de bicho instaurou-se nela.
Olhou para a mesa posta. A família reunida formava um burburinho alegre.Pratos e talheres tilintavam.
_Catita está amuada.
_Gênio do desgraçado do pai...
_Vinho! Mais vinho!
_Muito dinheiro no bolso...
_E saúde.
Embaixo da mesa tio Leandro esfregava a perna na coxa da...
A cortina voou e lhe desviou a atenção.Lá fora, o mesmo quintal.
_Viu como a Alzira mudou?
_Também...com aquele padrão!
_Depois o caso com o hum...
_Cale-se.Toda nossa família é gente muito honesta!
A mão do tio Leandro passeava sob o vestido transparente, a sua mão subia.
O nome do pato era Cândido. Quando se alegrava abria bem as asinhas e saltava. Agora toda a graça dele era triturada ali. Deglutida.
O vinho escorria pelo pescoço de tia Violeta. Estariam todos bêbados?
_A menina não quer vinho?
_Faz mal.
_Qual nada.Hoje vale tudo.Entrada de ano!
_O desgraçado do pai não punha álcool na boca.Nunca!
_Quero água.
A mão do tio Leandro desceu um pouco, estremecendo ao perceber a voz da criança.
_Quero água.
Jogava-lhe água corpo abaixo quando os dias eram ensolarados. Sempre guardou um temor de que ele se resfriasse ou apanhasse pneumonia. Mostrava
o alvo de suas tranças e o bico se sacudia todo, soltando as gotas translúcidas das penas brancas.
_Tome vinho, menina.
O copo ficou cheio. Tia Mariana chupava o osso como uma selvagem.Nos bigodes do avô um molho engraçado cor de tijolo. Os olhos de sua mãe estavam
enviezados.
_Ai...ai...que delícia!Hum...que prazer!
Os olhinhos redondos pareciam conhecê-la, era como se suas bicadas fossem
beijos. Puros, breves.
_Eu o amava.
_Ouça, querida. É apenas um pato.E está muito saboroso...(silêncio).
_Experimente.
_Não.Não quero.Quero água.
O pedaço foi jogado no prato de Catita.
_Coma, Catita.
_Eu já nem ligo mais...
_Essa menina não se cria.
_O desgraçado do pai não comia carne!
_É uma criadora de casos, Violeta.
_Crianças no meio de tantas pessoas adultas!
Catita levantou-se. A boca seca.Na garganta um soluço perdido.
_Precisamos entrar juntos no ano!
_Volte, Catita!
_...
_Volte!
_Essa menina não ouve ninguém!
_Deixe-a, Violeta.Nós também um dia já fomos assim....
(Um silêncio intrigante tomou o ambiente. A frase talvez tivesse uma conotação mais profunda para cada um).
Passos largos a levaram à brisa gostosa do quintal. O quintal era o mesmo. Uma peninha branca voou em sua direção. Acariciou-a levemente junto ao rosto de
pele pessegada.
Lá fora, uma voz estridente se fazia ouvir:
_É o pai escrito e escarrado.
Catita soltou a pena. Talvez o vento, o velho vento se encarregasse de enterrá-la...
E a menina, o olhar a se perder no espaço, só tinha consigo uma certeza: nunca
mais seria a mesma.
(Extraído do livro "Contos de verde essência")